Corações ocos, por Baptista-Bastos.
Velhos, ó meus queridos velhos, saltem-me para os joelhos: vamos brincar?
ALEXANDRE O'NEILL
ALEXANDRE O'NEILL
O número perturbador de velhos portugueses que morreram sós, e estiveram anos sem ninguém disso dar conta, permitiu uma série de piedosas declarações. A "atomização da sociedade", de que falou, admiravelmente, Simone de Beauvoir, num ensaio esquecido mas não datado [La Vieillesse], facilitou o sistema em que sobrevivemos, e que "confina com a barbárie."
Os nossos velhos pagam, amarga e dolorosamente, as nevroses das suas infâncias e as consequências das suas vidas frustradas, esmagadas, irrealizadas e aceitas com a resignação de quem foi alienado para consentir o inevitável declínio. A velhice, tal como as sociedades modernas a tratam, é uma questão de anomalia política, uma mutilação. Podíamos, talvez, atenuar essa violência, essa desolação social, com um pouco de compaixão.
Porém, autorizámos que nos esburacassem os sentimentos. Reparem: deixámo-nos de nos cruzar uns com os outros: simplesmente, atravessamo-nos; afastámo-nos da cordialidade, expulsámo-nos dos laços que nos uniam e justificavam como seres humanos e como comunidade. O nosso coração está oco.
Um país que abandona assim os seus velhos, que assim deixa morrer os seus velhos, é um sítio sem memória, um vácuo no vácuo. Um local inóspito que perdeu a ligação do espiritual e foi ocupado pela desordem estabelecida. Mas os sobressaltos de emoção são momentâneos. A dialéctica da Imprensa impede a durabilidade das nossas indignações, já de si muito ténues e muito frágeis. Os velhos mortos na solidão de todas as mortes serão substituídos pela inclemência da eterna actualidade. Morrem e passam a número. A dissolução do humano assimilou os nossos mais pequenos gestos, as nossas mais escassas fraternidades. A vulgaridade dos factos torna-se banalidade. Chega a ser indecoroso o lado mau da vida que os jornais expõem. Mas é assim. E o que assim é tem muito peso. O peso escandaloso da insensibilidade.
Os nossos velhos não estão, apenas, a morrer nas suas casas geladas de calor humano. Estão a morrer nos jardins, sentados na distância de já haverem perdido o pessoal sentido de identidade. O tempo flui neles e sobre eles, e já lhes não interessa, sequer, a desolação do seu fim de vida. Estão a morrer em caixotes horrendos, os paióis para onde são despejados como inutilidades que se desprezam.
E os jornais vão fornecendo números, levando, finalmente, para as primeiras páginas, aqueles que sempre as tinham merecido. Não gostamos dos nossos velhos. Abandonamo-los nos hospitais, rasuramos da nossa memória os seus afagos de pais e avós, as atenções que nos concederam, o amor que nos ofereceram sem contingências.
Que estamos a fazer a nós próprios?
5 Comentários:
Um texto fantástico.
Que, só de ler, arrepia.
Infelizmente cada vez mais vamos passar por isto! Hoje fruto dos empregos sem horas para nada, é díficil muitas vezes podermos prestar a devida atenção aso "Velhos", mas para a nova geracção vai ser muito pior. Abraço
Estas situações não são novas! Muitas delas nem sequer são culpa dos familiares, a esperança de vida aumentou muito, e por vezes os filhos com diferenças de idade entre os 18, 19 20 anos, também não têm saúde par carregar com um idoso ao colo. Devia haver mais lares (com o mínimo de qualidade) e isso sim seria bom para todos. Dar atenção e carinho é uma coisa, conseguir quer financeiramente quer tempo para eles é outra. Cada vez se trabalha até mais tarde, á muitos filhos e residir fora do País, tudo isso é um obstáculo. Abraço
Infelizmente estas notícias nunca de esgotarão. Denunciar é importante e devemos todos fazer a nossa parte, para perceber as causas e minorar estes acontecimentos, mas receio que o futuro não se apresente risonho neste campo, nem para os idosos actuais e muito menos para os do futuro.
Antigamente era diferente, mas não me pareçe haver hoje mais ou menos respeito pelos sentimentos familiares, dos nossos idosos. Os velhos morrem muito mais tarde,e por isso com menos qualidade de vida.Os próprios filhos dos filhos, que ficavam com os avós, agora vão para as creches e mal estão com os pais a não ser á hora de dormir,e ás vezez só com o pai ou a mãe mesmo ao fim de semana, (o meu caso que sou enfermeira) eles tb são vítimas de uma sociedade dos tempos de hoje, que pouco desfrutam da companhia dos pais..Abraço
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