Aqui fica, para quem ainda não leu, um texto de Pedro Mexia sobre os advogados. Será isto provocação, inveja, exagero ou realismo?
"Um navio naufraga e afogam-se cem advogados. É um desastre? Não, é um bom começo. Sempre ouvi anedotas destas. E não percebia porquê tanto azedume. Era como se os advogados fossem a escória do mundo. Conheço a classe: tenho primos e amigos advogados e até já me amiguei com causídicas. Eu próprio estive quase a ser da tribo. Depois de um curso penoso, fui o estagiário mais incompetente desde o cavalo de Calígula e chumbei na prova oral, entalado com perguntas inclementes sobre registos e notariado, assunto a que eu tinha devotado tanta atenção como à diferença entre as etnias balanta e bijagós. Em vez de repetir o exame, como outros faziam, senti que aquilo era um sinal divino e suspendi a inscrição. E lá continua suspensa, há tantos anos que já deve ter caído ao chão, exausta.A verdade é que se tudo tivesse corrido mal eu hoje seria advogado. Estava tudo encaminhado para que me tornasse, como toda a gente, "casado, quotidiano, fútil e tributável". Não escapei totalmente a ser “gros bourgeois” (mais “gros” que “bourgeois”), mas escapei à advocacia. Num texto chamado “Why I Am Not a Lawyer”, o ensaísta americano Joseph Epstein imagina-se um advogado de sucesso, atravessando a cidade no seu descapotável, com um belo casaco de caxemira, um relógio com um mostrador gigante, as unhas de manicura esmerada, os lavados e muitos dentes brancos à mostra. É isso que eu seria, se tivesse sido um advogado de sucesso, e também para ser um coçado advogado da comarca de Lamego não teria valido a pena. Joseph Epstein diz que o que o afastou da advocacia foi em grande medida a literatice e a impaciência com temas entediantes. Faço minhas as palavras do ilustre colega. O grande Tocqueville escreveu que os advogados americanos eram a aristocracia da democracia. Mas Tocqueville nunca conheceu um perito em evasão fiscal de Boca Raton. Reconheço a nobreza da ideia de “advocatus”, "aquele que é chamado". A defesa dos ofendidos e a administração da justiça são bens necessários. Mas não é preciso ter passado pelos bancos da faculdade para perceber que a vida jurídica tem pouco a ver com a Justiça maiúscula. É antes uma questão de provas, cláusulas, argumentos, interpretações, truques. Faço parte das pessoas que na juventude se interessaram pela profissão por causa dos advogados criminais das séries televisivas, litigantes de barra janotas e retóricos, que lidavam com casos fascinantes e eram gente decente. De” Perry Mason” às “Teias da Lei”, foram anos de doutrinação, e só no estágio percebi que até o direito criminal é um tédio (consiste basicamente no contacto com janados, larápios de automóveis e caloteiros). Se a vida dos advogados é menos excitante do que parece, a nobreza da profissão também é bem menos evidente do que o ideal. O Estatuto da Ordem dos Advogados proclama, no seu artigo 82º: "A honestidade, probidade, rectidão, lealdade, cortesia e sinceridade são obrigações profissionais." É um artigo anedótico, uma notável anedota de advogados. Se isso fosse assim, porque é que uma sondagem recente punha os advogados quase no fim da lista das profissões simpáticas aos portugueses? É que levavam um banho dos bombeiros que nem com agulhetas.O exacerbamento da dimensão "virtuosa" da advocacia lembra aquele delicioso preceito da Constituição jacobina de 1793: "Todos os cidadãos devem ser bons." Claro que há muitos advogados honestos, leais, corteses e o mais, mas nada disso é característica especial da profissão. Quanto à ideia de que os advogados são "sinceros", diria que é o adjectivo mais improvável de entre todos os contidos no dicionário Houaiss. Basta lermos as notícias: hoje em dia os advogados são muitas vezes empresários, lobbyistas, capangas de mafiosos. A mentira é para eles um dever profissional. Não creio que a classe se encontre moralmente abaixo da dos picheleiros ou dos talhantes, mas daí a tecer elogios à sua elevação ética vão uns quantos jantares em restaurantes da moda.A autoconfiança da espécie é um espectáculo que eu contemplo todos os dias com renovado pasmo. Alguém dizia que um advogado é um tipo que se senta e compõe a gravata à espera que todos exclamem: eis finalmente um tipo que se sabe sentar e compor a gravata. O advogado de sucesso não é o herói romântico dos romances policiais, mas a mordaz personagem de James Spader em “Boston Legal”: fatinho impecável, pose erecta, modos afectados, arrogância social, indomitável cinismo, lascívia em cascata, aquele esgar irónico entre o desprezo e a obstipação. O dicionário Houaiss tem uma palavra para eles: são uns cagões. Tocqueville ficaria triste."