A razão pela qual não é admissível o fim dos chumbos no ensino secundário (agora chama-se "exclusão", a palavra politicamente correcta), é uma razão de justiça social. O Estado, que os cidadãos legitimam e financiam, existe para cumprir funções de soberania, defesa e ordem públicas, administração da justiça e correcção das desigualdades sociais aberrantes. Nestas, inclui-se a obrigação de não deixar que ninguém more na rua porque não pode pagar uma habitação, que ninguém deixe de ser tratado porque não tem dinheiro e que ninguém deixe de estudar e ter uma oportunidade na vida porque não tem meios para tal.
Mas o Estado não tem obrigação de dar casas a quem as não estima nem cuida; de acudir às falsas baixas e aos falsos doentes que exigem uma TAC ou uma ressonância magnética porque estão com uma dor de barriga; ou de pagar os estudos a quem está na escola para não estudar e tudo fazer para perturbar os que querem estudar.
Primeiro do que tudo, portanto, os chumbos existem por uma razão de justiça social: uma vez corrigida a desigualdade de nascença e fornecida a oportunidade, o Estado (isto é, a comunidade, todos nós), não tem de insistir e proteger quem o não quer ou o não merece. É bem mais útil gastar o dinheiro dos impostos dos que trabalham a financiar um doutoramento no estrangeiro a um aluno excepcional e que, de outro modo, o não poderia fazer, do que gastá-lo em aulas de recuperação aos calões de serviço - que sempre os haverá. E, sobre uma razão de justiça social, existe ainda uma razão de mérito: em todos os domínios, e começando logicamente pela escola, que é onde tudo começa, o dever de uma comunidade não é proteger os medíocres e compadecer-se dos inúteis, mas sim estimular os bons e premiar os que fazem.
Podemos sempre discutir os métodos de ensino, os currículos, os manuais (eu, por exemplo, não sei porque me chumbaram, no meu tempo, por não saber o aparelho digestivo do coelho, quando estava na cara que aí não estava o meu futuro). Mas não podemos nunca transigir no essencial: quem o Estado deve apoiar são os bons alunos, não os maus. A falta de uma cultura de mérito, de uma cultura de responsabilização e de uma cultura de risco é hoje o principal problema do país. A proposta da ministra da Educação para acabar de vez com os chumbos representa a rendição de toda uma política.
A anterior ministra, Maria de Lurdes Rodrigues, experimentou começar a mudança por cima: pelos professores. A sua longa e desgastante tentativa de avaliar pelo mérito e responsabilizar pelos resultados concretos os professores foi derrotada na rua (que não na opinião pública) pela mais poderosa força em defesa da mediocridade a que já assistimos em trinta e seis anos de democracia. E o mais grave de tudo é que poderia não o ter sido, se a uma opinião pública que maioritariamente compreendeu o que estava em jogo e o apoiava, se tivesse juntado a opinião do establishment político: mas, do CDS ao BE, todos tiveram medo de enfrentar o lóbi dos sindicatos dos professores, com assento diário numa imprensa que prefere tomar partido pelos que berram e não pelos que têm razão. Não sei se as pessoas perceberam, mas a actual paz entre esta ministra e os sindicatos vai custar ao país, nos próximos anos, milhares de milhões de euros em promoções e regalias injustificáveis, e, mais do que tudo, a coragem de qualquer governo actual ou próximo de desafiar algum outro poder fáctico instalado nos seus privilégios e no seu reaccionarismo.
E, se dúvidas houvesse, a questão do Ministério Público veio demonstrar agora que o poder político, para citar a Sarah Palin, não tem cojones para enfrentar nenhum poder corporativo. Por uma vez (por uma vez, santo Deus!) o procurador-geral da República, Pinto Monteiro, teve a coragem de dizer aquilo que muito poucos, raríssimos, se atreveram a dizer antes: que esta estrutura do Ministério Público, em que cada procurador é independente e não presta contas a ninguém e em que o PGR faz figura de rainha de Inglaterra, não funciona nem faz justiça. O.K., podemos discutir se o PGR, pensando isso, não o deveria ter já dito antes ou ter-se demitido antes e dizê-lo depois.
Mas isso são pormenores, jogos florais: o que não é possível ignorar é que nenhuma democracia pode ter um primeiro-ministro seis anos a ser investigado por suspeita de corrupção, sem que o processo jamais esteja concluído - com uma decisão ou com outra, não importa; que nenhum país que se preze pode assistir de braços cruzados à total incompetência da investigação do 'caso Maddie', com toda a imprensa mundial a gozar connosco; que nenhum Estado de Direito se pode permitir que todos os casos mediáticos investigados decorram com sistemáticas fugas destinadas a proporcionar julgamentos populares e, no final, o MP acabe a arquivar por falta de provas, mas sempre sugerindo e insinuando que só pressões políticas o impediram de chegar à descoberta da verdade.
Por mais que a cultura dos "direitos adquiridos" se tenha instalado nas mentalidades, tornando tudo intocável, dos disparates constitucionais ao modelo de investigação criminal, este sistema em que o MP vai aos poucos, não apenas alargando os seus poderes, mas tomando conta do poder e ditando a lei, já provou que não funciona, não faz justiça e é politicamente explosivo. Num modelo alternativo, em que o fim fosse garantir a justiça, o Governo - a quem cabe executar a função de administração da Justiça do Estado e que, obviamente, tem um programa político onde a Justiça ocupa um capítulo (e que não é a dizer quantos novos computadores vai instalar nos tribunais) - não estaria permanentemente a dizer que nada tem a ver com a investigação criminal: pelo contrário, teria tudo a dizer sobre isso.
E, para tal, teria um programa político sobre o assunto, cuja execução confiaria a um PGR por si indicado e que aceitaria executar esse programa. Uma vez indicado pelo Governo, o PGR seria confirmado ou não pela Assembleia da República - que o interrogaria 'à americana', sufragando o seu currículo, as suas ideias, os seus métodos, os seus objectivos. Uma vez por ano, o PGR prestaria contas da execução do seu mandato perante o Parlamento - que, se não aprovasse a sua actuação, poderia demiti-lo em qualquer altura. Em contrapartida, o PGR teria poderes de facto sobre os procuradores e sobre cada caso em investigação: se não gostasse do andamento de uma investigação, se não concordasse com a decisão de um procurador de acusar ou de arquivar, poderia substituí-lo por outro - e, depois, explicaria no Parlamento porque o havia feito. Haveria uma cadeia hierárquica, uma responsabilização com rosto, uma política criminal escrutinada democraticamente.
Ah, e o sagrado direito de independência funcional dos magistrados do Ministério Público? Ah, isso acabava, claro: já demos para o peditório e o resultado está à vista! "Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio" do que os teus sagrados direitos exigem...
Foi isto que o dr. Pinto Monteiro deixou subentendido com as suas declarações. Mas, mais uma vez, do CDS ao BE, todos preferiram fingir que não tinham percebido (com excepção do PS, porque achou que tudo se referia ao 'caso Freeport' e à defesa de José Sócrates). Preferiram agarrar-se a questões formais, sobre a oportunidade e o modo das declarações do PGR, para não terem de encarar o desafio e pronunciar-se sobre a sua substância. Porque há eleições à vista, eles têm medo da imprensa politicamente correcta e não querem, de modo algum, enfrentar o lóbi do MP e levar a um parlamento dotado de poderes constituintes a questão mais do que incómoda do fim da autonomia funcional do MP.
Mesmo sabendo que, explicando o que está em causa, a maioria da opinião pública estaria de acordo em quebrar o poder desse lóbi. Assim como estava de acordo com a avaliação dos professores ou como está de acordo com o fim das SCUT, ou como está de acordo com um travão ao despesismo das autarquias locais, das suas rotundas e empresas municipais, com o fim da cedências às chantagens do dr. Jardim ou com o fim de um sistema instalado em que o Estado, que subiu em 6% a sua receita fiscal no primeiro semestre deste ano, aumentou também em 4% a sua despesa corrente.
Os portugueses, na sua maioria, já perceberam: os partidos é que não. Os portugueses estão prontos para as rupturas que têm de ser feitas, mas os partidos vivem amarrados aos lóbis de que acham que depende a sua sobrevivência: os professores, os construtores civis, os autarcas, os militares, os magistrados, a Igreja Católica, os 'produtores culturais'. Há quase cem anos que Portugal é governado assim, em obediência ao poder das corporações e a pergunta é: valeu a pena?